Pompea Tavares*
Um
inquietante ruído de respiração ocupou o espaço do Museu. Plantados no chão,
três corpos camuflam-se em seus tapetes de
vegetação verde e fresca. Canteiros artificiais, túmulos sobre o mármore duro e
frio, com suas raízes tocando a pedra e a nós mesmos. O corpo performático se
movia lentamente e no tempo dele nos movíamos ao redor e de um túmulo a outro,
investigando os atos discretos por entre as folhagens.
O perfume da vegetação tocava
lugares da memória violados pelo tempo. Intimamente, foi preciso reativar esses
lugares para encontrar os acontecimentos a que os cheiros me remetiam. O calor
e vento fraco do dia fizeram com que o perfume se tornasse uma massa densa ao
longo da tarde. O cheiro tão marcante da vegetação gerava dúvida quanto ao
prazer ou a náusea.
Corpo, vegetação, paisagem,
museu. A imagem viva compunha-se vagarosamente, o trânsito dos espectadores
desenhava trajetos no espaço, presenças e vazios atravessavam-se. Na imagem
inacabada, efêmera, o porvir se manifestava em ansiedade. O
deslocamento do tempo nos obrigava a mergulhar no presente, em simbiose com o
espaço. A interpretação dos acontecimentos se tornava um exercício de decifrar
emoções.
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Canteiros, de Marco Paulo Rolla (Foto: Luiza Palhares) |
Detive-me por alguns minutos a
observar a reação do público, que circulava
suavemente pelo salão. Alguns já habituados à linguagem performática olhavam
atentos, outros desavisados surpreendiam-se com a presença dos corpos. Algumas pessoas falavam sozinhas diante
dos canteiros, como se esperassem respostas daqueles corpos inertes, outras se
constrangiam e se afastavam. No entanto, todos comportavam-se de forma
semelhante: caminhavam lentamente, falavam baixo, não tocavam os canteiros e após
perceberem o ritmo das ações – movimentos minuciosos, mãos que ofereciam
galhos, um respiração ofegante - dirigiam-se para zonas mais afastadas do salão,
a espera de um novo acontecimento.
Do canteiro artificial
de Marco Paulo Rolla via-se os jardins de Burle Marx, integrados. Ao longe, um
grupo de crianças se aproximava vagarosamente apontando bem-te-vis, noivas e
capivaras. As crianças, de cinco e seis anos, seguiam na minha direção com
olhinhos atentos. A visita ao museu seria o passeio mais importante do ano para
esse grupo, o primeiro contato com um museu de arte e com uma ação
performática.
Naqueles minutos, insisti em
criar roteiros, passagens, perguntas; tentei mapear os sentidos possíveis a
serem trabalhados. Uma reflexão sobre a morte? Buscar a memória olfativa a que
os cheiros tão marcantes nos remetiam? Ir de um canteiro a outro, estabelecer
relações com o Museu e as pessoas ali presentes? Ao fim de cada raciocínio,
tudo parecia redutível e deslocado. Seria impossível mediar um acontecimento,
desconhecido e inesperado? Eu deveria, portanto, como educadora e espectadora,
me submeter também ao tempo da performance e dar chance ao grupo de experienciar
a obra da mesma maneira como experimentamos a vida. O comando dos
acontecimentos não me pertencia, não era eu a responsável pelo tempo ali, como
de costume. O performer diria o tempo necessário de observação e interação e a
reação do grupo me daria material para estabelecer, quando necessário, algum
diálogo ou intervenção.
Antes de entrarmos, orientei os
pequenos apenas sobre os limites de comportamento estabelecidos pela
instituição: correr, gritar, andar sozinho, pegar nas coisas, entre outras
ações, ficariam para uma outra hora. O momento era de caminhar atento, olhar e
investigar. O imponderável da performance
ainda exigia um comportamento pré-estabelecido dos alunos, justificado pelas
exigências institucionais, preservação do espaço e o que se espera do
comportamento de um público acompanhado pelo programa educativo – fruição
disciplinada.
Em passos lentos, entramos
no museu em direção aos canteiros, chamando atenção dos outros visitantes. As
crianças, pelo medo do desconhecido, se mostravam desconfiadas, e aos poucos se
aproximavam da vegetação tentando entender o que se passava. Entre um susto e
outro, as descobertas foram acontecendo. Um pé! Uma barriga! Uma cabeça! Ele
está morto? Não, ele está respirando. Oh! Uma mão se mexeu! A planta nasceu da
pedra?
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Crianças curiosas descobrindo o corpo entre arbustos. (Foto: Luiza Palhares) |
Os mitos construíam-se no
imaginário infantil, histórias naturalmente surgiam na tentativa de justificar
os fatos a medida em que se davam no tempo. Todos ali presentes compartilharam
uma experiência com o mundo e significaram – de forma pura e inocente – os
acontecimentos no tempo e no espaço, num exercício de tomar posse, de apropriar-se,
de estar presente e de pertencer. O que era imaginação e criação do grupo
misturava-se com a realidade e constituía um corpo mítico performático – o
corpo morto plantado no chão, o morto-vivo oferecendo flores, o ser-homem
integrado ao ser-planta, o natural e o artificial atravessando-se. O corpo
coletivo e partilhado.
Em um segundo momento,
instaurou-se no Salão um casulo vivo formado de um papel rijo e branco. O corpo
performático, enrolado em uma extensa folha de papel, modelava o casulo.
Espanto! Medo! Era um monstro? O casulo se movia, girava, tensionava. Perguntas
variadas tentavam aproximar a imagem que se via a um entendimento racional. O
tempo expandido exigiu uma atenção especial das crianças, um olhar dedicado a
compreender. Olha! Está bravo! Olha! Tem cabelo, é uma mulher! Tem uma mulher
lá dentro! Ela está presa! Ai que medo! E eis que, numa brava luta contra o
próprio casulo, contorcendo-se e lacerando o papel, o corpo surge em giros pelo chão seguindo a
inércia de seus movimentos. Uma das crianças concluiu suspirando toda tensão do
momento, que era melhor que a mulher, pobrezinha, usasse uma tesoura para cortar
o papel.
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Dobras de Ana Luisa Santos. (Foto: Luiza Palhares) |
Ao fim da visita, já nas
despedidas, me ausentei por uns segundos do grupo, que ficou no Salão diante do
papel amassado e dos canteiros. Quando retornei, metade do grupo estava deitado
no chão, contorcendo-se como minhocas, na tentativa de repetir os movimentos da
ação que acabara de se passar. O cenário conformou-se com a performance
espontânea e criativa das crianças, sem medo e sem espanto, numa manifestação genuína
do que foi concebido ao longo da visita.
Os fenômenos conduziram a visita:
juntos encontramos os corpos, observamos seus movimentos, suas similaridades e
diferenças, identificamos os elementos deslocados. Naturalmente as crianças observaram os corpos, algumas sentiram medo, outras se
espantaram, poucas acharam graça. A maioria investigou com curiosidade,
nomeando as imagens da forma como era possível para elas. Quando algum elemento
era descoberto a emoção infantil abraçava a obra de uma forma simples e
completa, fazendo-me refletir sobre a real importância de tantas racionalizações
e conceitos a que estamos habituados.
A performance atinge
complexidades difíceis de nomear, diz da própria existência, de sentimentos
desconhecidos e lugares inabitados, do cotidiano e do mínimo. Ver performance é
exercício do sentir, permitir-se no acontecimento, testemunhar e levar adiante.
Exige menos de nós do que podemos supor: exige submeter-se, entregar-se.
*Graduada em Artes Plásticas e Comunicação Social, Pompea
Tavares é mediadora em Museus e Instituições Culturais desde 2007. Nesta
exposição, desenvolveu o Projeto Educativo OUTRA PRESENÇA [investigações e
experiências educativas] em diálogo com a proposta Curatorial de Marco Paulo
Rolla, Ana Luísa Santos e Nathália
Larsen.